Por Evaldo D´Assumpção*

Apesar de aposentado há oito anos, continuo a acompanhar a vida profissional dos médicos, pois a ela devo quase tudo o que sou, e pela medicina tive, tenho e terei um profundo amor e respeito. Por isso mesmo, dói-me profundamente ver os descaminhos pelos quais segue esta nobre arte hipocrática, responsável por trazer à vida milhões de humanos e preservar-lhes, na medida do possível, e muitas vezes beirando o impossível, a saúde e a qualidade de vida.

E são os médicos e médicas, auxiliados pelos enfermeiros, enfermeiras e todos os demais profissionais de saúde, hoje divididos em numerosas atividades surgidas pelo desdobramento das necessidades – cada vez mais complexas – que se dedicam a esse trabalho, o qual, longe de torna-los deuses, beira o divino. Ainda que para muitos, e especialmente para os carentes de vocação (mas ávidos de sucesso material…), essa realidade já pouco ou nada significa.

E foi exatamente em decorrência desse acompanhamento, feito nas revistas e jornais de Associações Médicas e de modo muito especial dos Conselhos de Medicina (coloco no plural, pois mesmo aposentado e morando em outro Estado que não o de minha formação e exercício pleno da medicina, ainda tenho registro ativo nos Conselhos de Minas Gerais e do Espírito Santo), que tomei conhecimento de uma manifestação patética, sincera e altamente preocupante, de uma colega mineira. Refiro-me ao artigo por ela publicado na edição de N.º 60, de 2017, do jornal do CRM-MG. Preservo o seu nome para que fique registrado somente entre os médicos mineiros, mas comento o conteúdo para a reflexão de todos os leitores. Afinal, o que ela escreveu interessa a todos, e eu assino embaixo como se eu mesmo o tivesse escrito.

Seu título já diz quase tudo: “Quem vai cuidar de mim?”. Médicos são (ou devem ser!) os cuidadores, por excelência, de todos os humanos que padecem de alguma enfermidade, tanto quanto dos que estão sadios, para que preservem a sua higidez. Membro da Academia Mineira de Medicina, que tive a honra de presidir nos anos 2006 a 2008, recordo-me sempre do lema de nosso sodalício: “Morbus arcere” (Evitar a doença), “Aegrotos Sanare” (Curar o doente) e “Dolores Lenire” (Aliviar as dores). Uma tríade que define bem, até mesmo nas suas prioridades, o legítimo papel do médico. Qual seja: prevenir as doenças, que deve ser o nosso principal objetivo; tratá-las e curá-las quando sobrevierem; e quando nada mais puder ser feito para a sua cura, ainda restará a sublime tarefa de permanecer acompanhando o enfermo, aliviando seus sofrimentos, físicos, mentais e espirituais, enquanto existir um alento de vida.

A partir desse sagrado papel de cuidador dos outros, a doutora faz um breve histórico da previdência social em nosso país, agora padecendo – sem quem a cure – das sequelas da insaciável ganância e da violenta corrupção que vem dilapidando os caixas dos órgãos públicos, com seus efeitos deletérios sendo agravados pela estagnação das leis previdenciárias no que foi determinado em sua origem, ignorando que foram feitas no longínquo ano de 1923, quando promulgada a Lei Eloy Chaves, criando as primeiras caixas de aposentadoria e pensão no Brasil. De lá para cá, a expectativa média de vida do brasileiro passou dos então 34 anos, para 43,7, em 1940, depois 61,7, anos em 1980, 68,6, em 2000. Em 2015 a vida média saltou para 75,5 anos. Num raciocínio bastante elementar, pergunto: é possível conservar as mesmas regras e a idade mínima de aposentadoria em patamares semelhantes ao do início do século XX? Qual o sistema previdenciário é capaz de se sustentar nessas condições? Onde conseguir fundos para pagar uma aposentadoria digna, suficiente para sustentar os verdadeiramente idosos que já não conseguem outras fontes de subsistência?

Diante dessa realidade, somada a tantas outras variáveis devastadoras, a doutora volta-se para a sua história pessoal – e novamente sou solidário com ela, pois padeço de semelhante situação – e diz ter contribuído para o INSS por 30 anos, mais da metade do tempo sobre o teto máximo, que era de dez salários mínimos. Há quatro anos ela se aposentou e recebe hoje R$ 2.660,00. Recebendo inicialmente quatro salários mínimos, o valor que hoje lhe é pago representa menos de três. Continuando suas amargas reflexões, relata que continua trabalhando (como poderia parar, com a “regia” aposentadoria do INSS?), e a cada R$100,00 que recebe, entrega R$27,50 para o voraz leão da Receita Federal. Se isso não bastasse, atendendo por meio de convênios, recebe R$70,00 em média, por consulta, valor que só irá receber alguns meses depois. Isso sem contar os descontos feitos pelos convênios, sem qualquer explicação convincente. Um detalhe: sendo ela especializada em endocrinologia, certamente suas consultas não podem ocupar menos do que quarenta, cinquenta minutos. Cabe a pergunta: é justa essa remuneração?

E conclui, não em busca de comiseração, mas de compreensão e certamente reparação, procurando tocar fundo na consciência dos políticos e administradores oficiais (será que eles têm alguma consciência? pergunto eu), regiamente remunerados e com muitas de suas despesas custeadas como direito dos cargos, questionando, e fazendo de sua voz a de milhares de médicos: Quem vai cuidar de mim, quando eu já não puder trabalhar?

*Médico e escritor – Membro Emérito e Presidente (2006-2008) da Academia Mineira de Medicina; Membro Emérito da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, do Instituto Mineiro de História da Medicina e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Titular da Academia Campo-belense de Letras, MG; Titular-Fundador da Academia de Letras de Anchieta, ES. Fundador, Membro e Conselheiro da SOTAMIG – Sociedade de Tanatologia de MG, Departamento de Tanatologia da Associação Médica de MG; Senior-Member of ADEC – Association for Death Education and Counseling (EUA); Ex-Professor de Ética, por concurso, da PUC-MG; Professor-Convidado de Bioética e Biotanatologia da Faculdade de Ciências Médicas de MG. Aposentado.

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